Minicon-finamento
Passa da meia noite. No sofá, diante da TV ligada em canal aleatório, reconhece todas as suas vulnerabilidades diante do caos. Acorda pontualmente às 8h. Todos os dias. Toma café da manhã. Café preto, forte e acompanhado de uma fatia generosa de bolo. Dirige-se à porta e observa a vizinhança: casas quase sem vida, encerradas. Na contramão da paisagem, um homem. Religiosamente cruza próximo às 9h. É antigo na redondeza. Veste sempre a mesma calça. Marrom. Maior que ele. Dobrada na barra até a canela. Coz alto. Amarrada bem acima, na cintura - com um cinto preto, fazendo um leve franzido. Cruza sempre com passos largos e mãos nos bolsos. Inclinado para a frente, leva as mãos nos bolsos como se carregasse o mundo todo nas costas. Aonde irá? Talvez caminhar para desopilar do isolamento forçado. Talvez vá prestar algum serviço no bairro. Talvez vá ao centro da cidade comprar mantimentos. Em definitivo, o que ele fará, não sabe. Sabe, claramente, que espera sua volta. É um rastro de humanidade que vê passar todos os dias de sua porta - a metros e metros de distância. Saudável. Sempre saudável. Ao meio dia, serve o almoço para os conviventes. São sempre os mesmos. Olham para o prato com a mesma fome. Repetidamente, todos os dias. Sesteiam quando é possível. E quando não o é, guardam o corpo por horas sobre a cama. Às 15h, serve um chá de ervas que foram plantadas no verão passado, no canteiro da frente. O aroma invade a casa e os conviventes se sentam à mesa, convidados. Demoram-se aí até o telejornal. Às vezes, conversam. Outras, os olhos tagarelam todas as novidades em um silêncio abissal. São sempre profundos os olhos. O jantar, servido às 21h, é sempre pouco e breve. Cada um se recolhe as suas individualidades logo depois. E o sofá, enfim, é todo seu. Ali, pode reconhecer e acolher suas vulnerabilidades. Ali, pode até chorar. Sempre baixinho, sempre baixinho.
Incrível arte do minimalismo. É um talento para poucos. Fã incondicional da autora Angelise 😍👍
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