Leituras


Li... e me vi, sempre, sedenta por vida, por entrega ... e, agora, por paz.


O LIVRO DO DESASSOSSEGO - Fernando Pessoa

176.
Estou num dia em que me pesa, como uma entrada no cárcere, a  monotonia de tudo. A monotonia de tudo não é, porém, senão  a  monotonia  de  mim. Cada rosto, ainda que  seja o de quem vimos ontem, é  outro  hoje,  pois que hoje não é ontem. Cada dia é o dia que é, e nunca houve outro igual no mundo. Só em nossa alma está a identidade  -  a  identidade  sentida, embora falsa, consigo  mesma  -  pela  qual  tudo  se  assemelha  e  se simplifica. O mundo é coisas destacadas e arestas  diferentes;  mas,  se somos  míopes, é uma névoa insuficiente e contínua.

O meu desejo é fugir. Fugir ao que conheço, fugir ao que é meu, fugir  ao que amo. Desejo partir - não para as  Índias  impossíveis,  ou  para  as grandes ilhas ao Sul  de tudo, mas para o lugar  qualquer  -  aldeia  ou
ermo - que tenha em si o não ser este lugar. Quero não  ver  mais  estes rostos, estes hábitos e estes dias. Quero  repousar,    alheio,  do  meu fingimento orgânico. Quero sentir o sono chegar como vida,  e  não  como repouso. Uma cabana à beira-mar, uma caverna, até, no socalco rugoso  de uma  serra, me pode dar isto. Infelizmente, só a minha  vontade  mo  não pode dar.

A escravatura é a lei da vida, e não há outra lei,  porque  esta  tem  de cumprir-se, sem revolta possível nem  refúgio  que  achar.  Uns  nascem escravos, outros tornam-se  escravos, e a outros a escravidão é dada.  O
amor cobarde que todos  temos  à  liberdade  -  que,  se  a  tivéssemos, estranharíamos, por nova, repudiando-a - é o verdadeiro  sinal do  peso da nossa escravidão. Eu mesmo, que acabo de dizer que desejaria a cabana ou caverna onde estivesse livre da monotonia de tudo, que é  a  de  mim, ousaria    eu  partir  para  essa  cabana  ou  caverna,  sabendo,    por conhecimento', que, pois que a monotonia é de mim, a haveria  sempre  de ter comigo? Eu mesmo, que sufoco  onde    estou  e  porque  estou,  onde
respiraria melhor, se a doença é dos meus pulmões e não das coisas que me cercam?

Eu mesmo, que anseio alto pelo sol puro e os campos   livres, pelo mar visível e o horizonte inteiro, quem me diz que não  estranharia a cama, ou a comida, ou não ter que descer os oito lanços de escada  até à rua, ou  não  entrar  na  tabacaria  da  esquina,  ou  não  trocar  os bons-dias com o barbeiro ocioso?

Tudo que nos cerca se torna parte de nós, se nos infiltra na sensação da carne e da vida, e, baba da grande Aranha, nos liga subtilmente  ao  que está perto, enleando-nos  num leito leve de morte lenta, onde baloiçamos ao vento.

Comentários

  1. Bom. Mas ainda muito, digamos, "centrado em si mesmo", isto é, lamentando sua pena pessoal, sua tristeza pessoal, seu mal-estar de sujeito que se recolhe em si e, parece, não consegue (ou não tem coragem para) suportar o mundo em que vive. Prefiro o Pessoa mais "negador radical": Não quero nada! Já disse que não quero nada! Não me peguem pelo braço! Não gosto que me peguem pelo braço! Queriam-me casado, fútil cotidiano e tributável! A única conclusão é morrer. E por aí afora...

    Mais desesperado, mais radical, mas, por isso mesmo, mais resistente, mais corajoso.

    Enfim... só uma opinião.

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  2. Na verdade...estou em dúvida de como iniciar minha "resposta"... pois não assinaste o texto...acho que vou começar assim... Sr. Fornicar é preciso... Sua identificação remete a um poema célebre do Pessoa - "Navegar é preciso...viver não é preciso". Quer maior melancolia que entregar-se a arte sucumbindo-na. A arte é vida em
    efervescência ... entregar uma em nome da outra é negá-la. Mas...veja bem...Eu vejo o Pessoa com um questionador da vida...do homem...da essência. Quando eu o leio - é como se ele me apontasse o dedo... desesperado, radical, resistente...corajoso. Leio o pessoa como quem senta em um divã. Sair da leitura é sair descoberta...de mim. Cem (100) máscaras...sem véus... Pessoa me liberta como Pessoa... eis, para mim, o escritor que me pega pelo braço.

    Abraços,
    Angelise

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